No estado mais negro do Brasil, a Consciência Negra expõe feridas que insistem em permanecer abertas — e Feira de Santana revela essa realidade com uma clareza perturbadora.
O 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, mal passou e já deixa à mostra uma ironia amarga para a Bahia, o estado com o maior contingente de pessoas pretas e pardas do Brasil. A data, símbolo máximo da resistência de Zumbi dos Palmares, deveria ser um momento de celebração e reafirmação de identidade. No entanto, acaba funcionando como um espelho incômodo que reflete o racismo estrutural ainda entranhado no cotidiano baiano. Em Feira de Santana, essa contradição se materializa com uma frequência que ultrapassa qualquer limite aceitável.
A cidade que exalta sua diversidade cultural e a força de suas raízes afro-brasileiras convive diariamente com relatos de discriminação que desmontam qualquer discurso de igualdade racial. O episódio recente de racismo em uma escola estadual no distrito de Maria Quitéria, envolvendo crianças e adolescentes, deixou claro que o preconceito não se limita às margens sociais ou às relações de poder. Ele invade os espaços de formação, molda comportamentos e atinge os mais jovens em um momento decisivo de construção de identidade. Quando uma criança negra é humilhada, discriminada ou tratada com desconfiança, a data de celebração se converte em luto, e o orgulho dá lugar à indignação.
Não é possível ignorar que o corpo negro, em Feira e em toda a Bahia, ainda é visto como suspeito por padrão. Nas ruas, nos shoppings, nos mercados, nos estacionamentos ou em qualquer espaço de convivência social, a vigilância seletiva se repete com impressionante naturalidade. Empresas de segurança privada, influenciadas pelo viés racial arraigado, acabam perpetuando um comportamento que associa a cor da pele ao risco — e isso se reflete em olhares desconfiados, abordagens intimidatórias e constrangimentos que se repetem em silêncio, mas que ferem profundamente.
A consequência desse comportamento estruturado é trágica e aparece de maneira cruel nos números. Jovens pretos e pardos continuam sendo as principais vítimas da violência letal no Brasil, e a Bahia segue esse padrão com exatidão. A periferia, sempre majoritariamente negra, vive sob tensão constante, e mães choram rotineiramente a perda de filhos que se tornam números de estatísticas que não precisam mais de comprovação para revelar o obvio: a cor da pele ainda define quem vive e quem morre.
O Brasil possui leis rigorosas contra o racismo. O crime é inafiançável e imprescritível, e o Estatuto da Igualdade Racial estabelece diretrizes para a promoção de direitos e oportunidades. Mas um país não muda apenas com leis. Muda com prática, com ação, com vontade política. O racismo estrutural é alimentado por comportamentos diários, por decisões institucionais, por heranças históricas que não foram reparadas. Combatê-lo exige mais do que punir indivíduos: exige educação antirracista como política de Estado, fiscalização séria no mercado de trabalho, ações efetivas de combate à desigualdade social e uma revisão profunda da atuação policial em territórios periféricos.
A Bahia, berço de cultura, história e ancestralidade negra, tem a responsabilidade — mais que isso, a obrigação — de liderar esse processo de transformação. Feira de Santana, maior cidade do interior nordestino, precisa assumir o papel de protagonista nessa mudança. A maior parte de sua população é negra; portanto, também deveria ser negra a maior parte dos direitos, das oportunidades e do acesso à dignidade plena. Ainda não é.
Que o Dia da Consciência Negra deixe de ser uma data que lembra feridas e passe, definitivamente, a representar conquistas. Que a cor da pele deixe de ser um fator de vulnerabilidade e volte a ser somente parte da estética humana — nunca mais uma sentença social. A luta por justiça e igualdade não é apenas necessária; é urgente. E será sempre o único caminho possível para honrar a resistência que nos trouxe até aqui.
Renato Ribeiro, jornalista e radialista, apresentador e produtor do programa Rádio Repórter



